quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

da saúde


"Muito obrigada, senhor doutor, deus lhe dê muita saúde"
A um espírito sempre entre o crítico e o céptico, uma frase destas sugere muita coisa, ainda mais se a contextualizar nas urgências de um hospital. Primeiro agradecer fica sempre bem - não é porque o serviço é público, tendencialmente gratuito (?), e os outros estão lá para nos servir que temos o direito de ser mal-educados. Depois o "senhor doutor" cheira sempre a coisas de outro tempo já que hoje em dia o "senhor" "senhora" ou ainda mais "menina" caiu definitivamente em desuso (provocativamente lembrei-me do acordo ortográfico e do sugestivo vocábulo brasileiro sinhá). Em terceiro lugar, isto de deus e medicina a mim parece-me que não joga mas da maneira que as coisas vão, ter saúde só mesmo por milagre. Por fim os vários trocadilhos com a saúde: deus lhe dê saúde para não precisar de ser tratado, deus lhe dê saúde para continuar a curar, deus lhe dê saúde porque vai precisar ou então - um pouco de dark humour - deus lhe dê muita (trapalhada do ministério da) saúde já que eu não posso dar-lhe o que merece.
Agora sem brincadeira, ficou-me o eco desta frase desde a semana passada. Não vi a doente nem o médico, mas o tom indica o que verdadeiramente era, ou seja, um agradecimento sentido de alguém à pessoa que a atendeu e tratou bem. Soou-me a João Semana, a Retalhos da Vida de um Médico, a algo de bom deste Portugal antigo de gente que sabe agradecer e abençoar.
A vós, deus (tenha o nome que tiver) ou o acaso vos dê muita saúde (da boa, da competente, rápida e barata de preferência) e médicos com mais amor à profissão do que ao euro.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

do Natal


Não sou fã. Não gosto do Natal, ou melhor, gosto da ideia do Natal mas assim que me vejo num centro comercial a matar a cabeça à procura de prendas, passa-me logo. Gosto de música de Natal, desde que não tenha que levar com ela em todo o lado. Gosto de bacalhau mas não gosto de comer bacalhau cozido em dia de festa. Gosto da decoração de Natal, mas não das chinesices de mau gosto que poluem mais do que enfeitam. Gosto da ideia da solidariedade mas abomino os peditoriozinhos de Natal e as correspondentes aldrabices.
Não gosto do exagero e dos sentimentos de circunstância "só porque é Natal". (Também não gosto que isto pareça uma entrevista do Daniel Oliveira.)
Não gosto da tradição só porque é tradição e também não gosto que a receita de quase todos os bolos-rei do mundo tenha leite, mas gosto do bolo de chocolate que a minha tia faz para mim.
Em que ficamos? Eu voto pela abolição do Natal mas também do carnaval e da páscoa e outras festivalices do género. Mas mais do que essas, labuto pela abolição do ano novo. Essa sim, festinha que mais me irrita! Toda a gente a celebrar nunca percebo o quê, já que de um minuto para o seguinte muda o ano, mas não muda mais nada (para além dos níveis de alcoolemia). Não ficamos mais ricos - o mais certo é ficarmos mais pobres- não ficamos mais bonitos nem mais inteligentes nem mais bem-sucedidos e, convenhamos, nem sequer mais esperançados. Quanto a mim, o meu maior desejo para 2012 é que ... não haja 2012! Não é porque ache que o mundo vá acabar ou venha o degelo ou a nova glaciação mas apenas porque relativamente a um ano que, sem ter começado já parece tão mau, só posso desejar saltá-lo!!!! Mas havemos de festejar porquê? Mal por mal, fico-me por 2011! Ao menos já sei com o que posso contar! ;)
imagem em: fineartamerica.com

domingo, 27 de novembro de 2011

Triste FADO, triste?


Muito se tem falado de fado nestes dias. O fado. O nosso fado. A alma lusa. A voz de todos nós.
Até há alguns anos não gostava de fado. O que dizia o fado a uma criança imaginativa, a uma adolescente cheia de sonhos, a uma jovem a desbravar a vida cheia de entusiasmo? Detestava (e ainda detesto) o fado da tradição, desgraçadinho, com muitos ais, morrer de amor ou de tristeza, "eu beijo as pedras do chão que ele pisar no caminho", o fadinho infeliz, cheio de ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh a reverberar no peito. Outra coisa que não suporto são crianças a cantar fado como papagaios, macaquinhos de imitação, fotocópias esborratadas do fadinho desgraçadinho a chorar coisas que não podem saber o que são, e gente que é fadista de karaoke. E depois há os que são fadistas porque sim, porque está na moda, porque é in, porque é menos mau que ser cantor pimba.
Eu nunca fui a uma casa de fado, nunca entrei nesse ambiente meio subterrâneo da cultura urbana, nunca conheci nenhum fadista, nunca achei que a Amália falava de mim. Primeiro, porque o fado já não é o que era, a canção boémia, marginal e verdadeiramente desgraçadinha. Depois porque não sou de tradição. Por fim, porque nunca me apeteceu. Mas sempre adorei a música da guitarra e as composições de Carlos Paredes sempre me ressoaram algures entre a coluna e o externo.
Mas então apareceram a Mariza, a Cátia Guerreiro, a Ana Moura a cantar coisas que falam de mim, de estar no carro a pensar na vida, da mulher que lê búzios, do cavaleiro monge, da chuva. Não são desgraçadinhas, não beijam as pedras, não gargarejam ahhhhhhhhhhs.
Foi durante o Euro 2004, conhecido entre os meus amigos como " a última vez em que fomos verdadeiramente felizes" que vi a Mariza num palco enorme e centenas e centenas de pessoas ali a ouvir. Gente de todas as idades parava e ficava. De boca aberta de espanto, como que encantada, também parei e fiquei a ver e ouvir aquela mulher excessivamente alta de negro que enchia um palco inteiro a cantar o tal do fado. Pensei para mim "esta mulher é um animal de palco"!!!!!! Foi nessa noite a primeira vez que o fado falou de mim e nos dias seguintes contei a toda a gente que a Mariza era um animal de palco como eu nunca pensara que uma fadista pudesse ser.
Foi 2004, foi o Euro, foi a Mariza, foi a vida, foi a dor, foi a alegria, foram os 30, fosse o que fosse hoje sinto o fado, sou do fado, sou pelo fado, sou fado. O que é certo é que é preciso viver um bocado para sentir o fado e é preciso que o fado deixe de falar dos xailes negros e da estiva e fale das calças de ganga e das hipotecas para continuar a ser o que sempre foi - a voz da alegria e da dor dos portugueses! O que hoje celebramos e partilhamos com a humanidade é a alma de ser português, desta maneira ora infeliz ora eufórica ora lamentosa de ser, que só nós sentimos e apenas o fado, mas só em parte, consegue explicar.
Fado triste? Nem sempre, por favor!

terça-feira, 22 de novembro de 2011

do amor e das crianças


Ontem, eram mais de nove da noite, estava eu em pijama, prontinha para me meter na cama com um bom livro, ouvi uma criança chorar na rua. Só ouvia a criança, nenhum adulto. Ao fim de alguns minutos resolvi espreitar. Era um menino pequeno, 5, 6 anos que brincava na rua de cá para lá, falando para si próprio, aparentemente sozinho. Fiquei ali à espera de ver o adulto que o acompanhasse, o irmão mais velho, alguém.
Ao fim de algum tempo o menino continuava por ali. Sem uma camisola, um casaco, nada, a não ser um lenço que me lembrou Arafat que fazia esvoaçar na mão. Eram nove e meia, um frio de rachar e o miúdo andava por ali. Decerto gelado, sozinho, indefeso. Passaram-me mil histórias pela cabeça.
Vesti-me de novo, pus um gorro, meti o telemóvel e as chaves no bolso, desci as escadas e fui para a rua. Gelei assim que abri a porta. Não vi o miúdo, percorri as ruas ali perto. Nada. Voltei para trás, achei que alucinava. Mas não. Lá estava ele. De camisa de algodão e sozinho a brincar com um tubito de plástico. Aproximei-me devagar, falei com ele, perguntei se andava na escola, apresentei-me. Disse-me o nome, que andava no primeiro ano, o nome da professora. 6 anos, concluí. Estava gelado mas disse que não tinha frio. Sentei-me no muro a falar com ele. Disse-me que a mãe trabalhava num café ali perto. Mas o café era noutra rua. Limpei-lhe uma lágrima da face e ele disse que estava triste porque alguém lhe tinha batido no café. Fiz-lhe uma festa na cabeça e disse-lhe que podia ficar ali com ele mas ficava mais descansada se ele fosse para perto da mãe e que ia até lá com ele. Sorriu, um grande sorriso luminoso de criança e disse "então vamos por aquele lado que o caminho é mais curto". E saltitou à minha frente na noite gelada. A meio do caminho apareceu uma mulher que ralhou com ele por estar na rua com o frio. Disse-lhe que o ia levar à mãe e ela disse que o levava. O menino correu até à porta do café.
Voltei para casa gelada e com o coração apertado. Eram quase dez da noite. Durante mais de meia hora apenas eu me preocupara com aquele menino. Durante mais de meia hora ninguém o procurara.
Eu sei que meninos de seis anos fazem birras e fogem e não ligam ao frio. Sei que há mães que precisam de levar os filhos para um café à noite para poderem trabalhar. Mas também sei que uma mãe não perde o filho de vista por mais de meia hora à noite, por muito que esteja a trabalhar. Sei que a zona é aparentemente calma mas tem estrada, carros, duas fontes, cães vadios. Sei que como eu quis levá-lo à mãe (ou à GNR que era o plano B) qualquer pessoa podia levá-lo para longe, fazer-lhe mal.
Deitei-me com um sentimento de dever cumprido mas com o coração apertado, e o olhar triste daquele menino que queria ter levado comigo para o proteger, para o aquecer, para o amar. Quantos meninos andavam na rua àquela hora sem terem quem os amasse, ainda que fosse por meia hora? Quantos meninos mereciam o meu amor? E é esta questão dolorosa que hoje me faz estar assim, com este aperto no fundo da garganta e uma vontade de mudar o mundo nem que seja de apenas um menino.

domingo, 20 de novembro de 2011

dos sonhos realizados e adiados



Hoje - ao domingo dá-me para isto - embrenhei-me nas memórias e regressei à indescritível sensação de pisar a Ponte Vecchio e olhar em volta e pensar "estou MESMO aqui"! Parecia um sonho mas o melhor de tudo é que era real. Quem ler isto pode pensar "que raio de sonho pisar uma ponte!". Mas era o meu sonho.
Os meus sonhos nunca foram comprar um carro ou ter um "casamento de sonho" ou uma casa de sonho. A ponte Vecchio era um sonho. Aquele que me deixava pregada à televisão sempre que se falava em Florença, em Leonardo Da Vinci, na galeria Uffizi, que erradamente me ensinaram na escolaser a galeria dos ofícios, ou seja, das profissões, quando era apenas a versão Medici de um bloco de escritórios de burocratas.
Respirei fundo, olhei em volta vendo tudo como as imagens dos filmes em que as personagens giram sobre si próprias e senti os olhos húmidos, o coração a bater manso, a respiração suspensa a meio. Estou mesmo aqui. E nada se compara a essa sensação, à realização, àquele momento único e pessoal de felicidade total só por estar ali.
E são esses momentos que ninguém me tira.
E agora estou à espera de voltar a ter essa sensação que me recuso a comparar à embriaguês (a metáfora seria degradante demais para tão sublime sentimento) num barro do porto de Buenos Aires ou da velha Havana, na Fontana di Trevi, no Planalto de Gizé, no palácio de Alhambra, no Taj Mahal, num hotel em cima de uma árvore da Amazónia, ou na praça vermelha em Moscovo ...
São assim os sonhos. Também os momentos em que o imagino me enchem de uma felicidade antecipada que me leva a "saber" que de uma forma ou de outra um dia hei-de dizer uma e outra vez "estou MESMO aqui"!

domingo, 6 de novembro de 2011

do amor e dos sonhos


Hoje estou um pouco constipada e, raridade!, fiquei enroscada no sofá a ver televisão. Um filme que, estranhamente nunca tinha visto e que se passa num dos meus lugares favoritos - um aeroporto. Sabem aquela emoção de nos sentirmos no centro do mundo, de podermos viajar para qualquer lado bastando - parece- atravessar uma porta, um corredor e ver o avião fazer-se à pista? Lembro-me de passar duas horas no aeroporto de Frankfurt só a olhar para o placard das chegadas e partidas e a viajar pelo mundo todo enquanto esperava o avião para casa. Ah, como eu gosto de aeroportos! Um aeroporto é a plataforma para os sonhos, a sério, eu sei!
Mas voltemos ao filme, um desempenho fabuloso - como não podia deixar de ser! - de Tom Hanks que representa um homem preso num aeroporto por circunstâncias legais, por um sonho e por um burocrata.
E podem leis, burocratas e circunstâncias alheias travar um sonho? Pode um aeroporto transformar-se numa prisão? Pode o sonho estar à distância de um passo, para lá de uma transparente e frágil porta de vidro? Pode um sonho morrer à beira de um carimbo?
"The Terminal" fala-nos disto e de muito mais!!!! Fala-nos de promessas, de persistência, de amizade, de esperas, de amor.
E faz-nos pensar em tantas tantas coisas, tantas esperas, tantos desencontros, tantas promessas não cumpridas, tantos sonhos, tantas coisas por que vale a pena esperar... mas não tempo demais.